sábado, 23 de dezembro de 2017

Acerca da aspiração

Desloquei-me à urgência de obstetrícia de manhã e fui recebida no consultório por dois médicos e uma médica. Quiseram saber o que aconteceu, pelo que sintetizei a situação. Com uma postura algo rude um dos médicos perguntou-me o que me foi dito na última vez que tinha ido àquele serviço. Respondi que ficou combinado ir lá no dia 28 de dezembro para fazer a raspagem, contudo como continuava a libertar coágulos e a hemorragia estava aumentar novamente, comuniquei a situação à equipa de Medicina de Reprodução. A indicação que a Diretora tinha dado era que deveria proceder imediatamente à raspagem, não podendo ficar a aguardar até ao dia 28. Obtive como resposta "Quem decide se faz agora ou não, somos nós". Fizeram-me ecografia através da qual viram que de facto ainda havia conteúdo espalhado em várias zonas, um dos vestígios tinha 15 mm. Concluíram que iria fazer aspiração. Por precaução questionei se o conteúdo ia para análise. Parecia que estavam a estranhar a minha pergunta, então referi que havia a suspeição de que o embrião tivesse uma anomalia genética. O médico com a postura resistente disse "vocês não fizeram estudo de cariótipos?". Respondi afirmativamente, foi das primeiras coisas que se despistou antes de iniciar lá os tratamentos e ambos são normais. Ouvi da parte dele "então os vossos embriões não têm alterações se está tudo bem convosco".

Os meus conhecimentos de biologia ao nível da divisão celular e de genética datam de uma aprendizagem realizada já no século passado mas, se não estou enganada, podem ocorrer erros na meiose, assim como nos processos de replicação, transcrição e tradução do ADN, que geram mutações. Pareceu-me que assumir que cariótipos normais geram sempre embriões sem anomalias terá sido um erro. Como não sou expert, vou tornar a estudar o assunto.

Frisei que era o terceiro aborto e está previsto realizar a última FIV em fevereiro. A equipa médica de PMA salientou que precisa ter esse esclarecimento antes de se fazer novo tratamento. O médico disse então que a amostra iria ser enviada para análise. Como na urgência há dois blocos que naquele momento estavam a ser usados e um tem de estar sempre disponível para grávidas (senti-me reduzida a pó), teria de voltar às 13 horas para se proceder à aspiração, mantendo o jejum. A última refeição que tinha feito fora o jantar do dia anterior.

À hora indicada apresentámo-nos novamente na urgência, entrámos para uma sala onde se encontravam parturientes com os respetivos companheiros, em camas separadas por cortinas. Eu e o meu marido ficámos sentados em dois cadeirões na entrada desse espaço. Mesmo ao meu lado, para lá da cortina, havia uma grávida cujo filho tinha os seus batimentos cardíacos a serem monitorizados. Era um ruído frenético, em que se notava por vezes alguma arritmia como vieram a confirmar. Fora isso, e os momentos em que as enfermeiras falavam de forma mais agitada, não imaginava que uma concentração de mulheres em trabalho de parto se traduzisse numa calma e sossego daquela dimensão. Uma a uma foram administrando a epidural. Enquanto isso nós aguardávamos que um bloco ficasse disponível para deitar para fora o oposto da vida. Estava com as mãos e pés gelados, com fome, a ouvir por um lado, um rádio que tocava baixinho naquela sala, por outro gritos de bebés que tinham acabado de nascer nos blocos. Comentavam que era um dia atípico pela quantidade de nascimentos. Os bebés tinham decidido antecipar a época festiva. O meu Natal tinha acabado umas semanas antes. Para aumentar o sentimento de inutilidade estava ali a testemunhar o milagre da vida enquanto aguardava pela limpeza dos restos que já eram nocivos para o meu equilíbrio. Tranquilizava-me a ideia de haver finalmente uma amostra para analisar para compensar a frustração de não ter conseguido salvar nenhuma naquele maldito dia. Nada me garante que o resultado vá ser conclusivo, pois passou muito tempo desde o aborto.

Numa brecha que as enfermeiras tiveram, lembraram-se que estávamos nos cadeirões. Perguntaram-me quando é que tinha comido pela última vez, pois supunham que tivesse sido há muito tempo. Quando respondi que tinha sido no jantar do dia anterior conversaram entre si para decidir se podiam colocar-me a soro. Acharam que sim e passado talvez mais de meia hora, já depois das 16 horas, apareceram com o material. Começou a caça à veia nas duas mãos. Como referi anteriormente, tinha as mãos frias, que não é habitual em mim. As minhas veias são finas por natureza, com frio pior ainda. Mesmo com garrote e pancadinhas elas não dilatavam. Uma das enfermeiras procurou e não encontrou nada. Outra aventurou-se e começou a introduzir o catéter numa que se revelou timidamente. A veia rebentou logo, já não podia ser usada. A alternativa encontrada foi aquecer-me. Foram buscar um lençol aquecido e um saco de soro quente para colocar por cima da outra mão e do braço. Estive assim durante algum tempo até chegar a hora de nova caça. As veias continuavam escondidas, então veio outra enfermeira tentar a investida. A solução estava numa veia na parte lateral do pulso que, pessoalmente, é mais doloroso para mim. Muito devagarinho ela foi introduzindo o catéter, quase no limiar de rebentar nova veia. Conseguiu completar com sucesso, todos nos sentimos aliviados por se ter colocado o catéter. Fui colocada a soro para atenuar a fome e permaneci no cadeirão até quase às 17 horas. Quando finalmente um bloco ficou disponível fui chamada e encaminhada para outro cadeirão no meio de uma zona de passagem ampla entre várias salas. O anestesista veio ter comigo para fazer as perguntas da praxe. Voltei a falar da importância de os tecidos serem analisados, então tranquilizou-me dizendo que ia reforçar ao médico que ia fazer a aspiração. Fui para o bloco onde me deparei com uma marquesa de ginecologia um pouco mais complexa do que o habitual. As pernas ficaram elevadas nuns apoios azuis almofadados que as envolviam quase até ao joelho. Dava para aquecer um pouco daquele frio da sala. Cada braço ficou em suportes, igualmente envolvidos. Tinha oxímetro num dedo e medidor de tensão no outro braço. Foram colocados os elétrodos para monitorização cardíaca e um lençol quentinho a cobrir peito e braços. Prepararam as luzes e uma das enfermeiras queria trazer o aspirador para o bloco. Comentou que não gostava de o fazer com as pacientes acordadas, então acharam melhor sedar-me. O anestesista avisou-me que me iam adormecer, colocou-me uma máscara à frente e pediu para que inalasse profundamente. À medida que inalava sentia o líquido anestésico a circular no braço e a visão a duplicar. A última coisa que ouvi foi para pensar em coisas boas. Não tive tempo...

Acordei no recobro com um aquecedor a ventilar para o interior do lençol. Senti imediatamente dores, a enfermeira estava ao meu lado e perguntou se estava tudo bem. Queixei-me das dores, ela disse que era normal e perguntei se me podia virar para o lado. Como não havia problema fi-lo e ajudou a aliviar. Tentei dormir mais um pouco, embora não tenha conseguido, aquele bocadinho em que mantive os olhos fechados serviram para que deixasse de sentir dor. A cada 15 minutos era feita monitorização automática da tensão. Inicialmente ignorei, mais tarde comecei a espreitar. Chegou a estar 8/6. De vez em quando perguntavam-me se me sentia bem. A dada altura vi uma enfermeira sair muito rapidamente do bloco de partos com um bebé nos braços para a sala de reanimação. Ele estava sôfrego a chorar. Passado pouco tempo, na cama ao meu lado chegam a recém-mamã e o pai desse bebé. Era o que estava com arritmia. Levaram-no para junto dos pais, então a enfermeira perguntou se eu sentia frio. Disse-lhe que não e ela levou o aquecedor para junto deles. Ao mesmo tempo que esse casal ouvi aqueles dados que os recém-papás querem saber sempre sobre os seus rebentos - o peso, tamanho e perímetro cefálico. A enfermeira trouxe-me em seguida chá com bolachas, o frasco do fármaco tinha terminado e voltou a colocar o soro. Permaneci no recobro mais algum tempo. A bexiga começou a encher muito rapidamente até que já incomodava. Aproveitei a passagem da enfermeira para pedir para ir à casa de banho. Sentei-me durante um pouco na beira da cama e pude voltar para a zona dos cadeirões e grávidas em trabalho de parto onde se encontrava o meu marido, porque ia ter alta. Já eram 19h30, estava a levantar-se para perguntar por mim quando cheguei ao pé dele. Fui à casa de banho, vesti-me, enquanto isso a enfermeira foi saber junto do médico se podia ir embora. Ele veio ter comigo e disse que correu tudo bem, os tecidos foram enviados para análise citogenética e à partida não iria ter grandes perdas por causa da aspiração, nem deveria sentir dores. Fomos com a enfermeira retirar o catéter e finalmente viemos embora.

Em diversas circunstâncias em que estive em ambiente de ambulatório, agora ou no passado, assisti a discussões entre profissionais de saúde dentro da mesma categoria profissional ou com funções diferentes, que não se coíbem de se afirmar hierarquicamente, em tom de voz elevado, sem se preocuparem se os utentes estão ou não a prestar atenção. Faz-me confusão esse tipo de atitude, a meu ver desagradável.

Daqui a três semanas ligo para o piso 3 para relembrar que fiz a aspiração, assim as médicas vão-se mantendo atentas ao computador para ver quando saem os resultados e avisam-me logo que saibam alguma coisa. Parece-me que o meu caso está a chamar a atenção pela complexidade.

Um dos aspetos que me está a causar algum incómodo é que provavelmente vou saber se o embrião era de um menino ou menina. Esse pormenor torna tudo mais próximo e doloroso porque, de certa forma, personifica mais aquele que apelidava de mini-nós. Seria o meu filho ou a minha filha que nunca iremos conhecer e para o/a qual não tivemos tempo nem coragem de perspetivar nada para o seu futuro.

Todos os dias penso que 6 de junho de 2017, 2 de fevereiro de 2018 e 17 de julho de 2018 poderiam ser datas tão significativas para nós... O destino tem-nos fintado com esperanças medíocres. Acena-nos com uma cenourinha para, logo de seguida, começar a fugir com os nossos sonhos. Pensei que fosse ficar mais perturbada por estar no meio de um ambiente oposto ao do piso 3. Mas que foi irónico, isso foi. Vou interpretar este episódio como a última partida de mau gosto que o ano de 2017 me pregou.

4 comentários:

  1. Lamento muito que tenhas passado por isto... mas agora é "bola para a frente" :)

    Beijinho grande e Feliz Natal querida PL

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  2. Tive que conter as lágrimas ao ler este teu relato. Mais uma vez reforço o quanto lamento teres passado por isto.
    Mas como diz a mylittlefairytale agora é pensar na próxima.
    Beijinho grande e feliz natal

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  3. Feliz Natal, PL. Lamento muito a forma como 2017 está a terminar e tudo aquilo que trouxe, mas espero (de coração) que os próximos tempos sejam melhores. Coragem!

    MM

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  4. Ao ler as tuas palavras as lágrimas correm na minha cara.
    Só desejo que esta página vire e finalmente possas escrever um capítulo com um final diferente. feliz.
    Desejo para ti o que desejei para mim e oxalá também venha um par.
    Xi coração apertadinho,
    Bolinha

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